Já pensou como seria
viver sem reconhecer o rosto de ninguém, e não identificar nem mesmo a sua
própria cara? Seja bem-vindo ao mundo misterioso da prosopagnosia - um das
doenças mais bizarras que existem.
Minas Gerais, férias de verão. A produtora de moda Mônica,
de 24 anos, está com um amigo numa lanchonete quando chega outro jovem. Ela o
cumprimenta polidamente. Meio espantado, o amigo pergunta: “Mônica, você não se
lembra do Marcelo?” Ela não consegue reconhecer o tal Marcelo, que dá um
sorrisinho constrangido. Era seu ex-namorado. São Paulo, Hospital da Unifesp. O
médico Rodrigo Schultz, de 25 anos, está trabalhando no setor de neurologia.
Até que chega uma paciente se queixando de um estranho problema. Schultz mostra
uma foto à paciente e pergunta: “Quem é esta mulher?” A paciente não sabe
responder, mas a pessoa em questão era ela mesma. Nos dois casos, o diagnóstico
foi o mesmo: prosopagnosia, uma estranha doença que torna o cérebro incapaz de
identificar rostos.
A prosopagnosia foi descoberta no front de batalha. O ano é
1944, e estamos na 2a Guerra Mundial. Durante um bombardeio russo, um soldado
nazista se fere – alguns estilhaços de bomba atingem sua cabeça, causando
lesões cerebrais. Ele é tratado pelo neurologista alemão Joachim Bodamer, que
faz uma operação para remover os estilhaços e depois aplica um teste para
avaliar o estado do paciente. O médico pede que a esposa do soldado vista um
uniforme de enfermeira e fique entre enfermeiras de verdade. Aí pergunta ao doente:
“Percebe algo de diferente nessas mulheres?” O soldado diz que não. Ele
simplesmente não reconhece mais a esposa. Bodamer faz mais testes e constata o
que aconteceu: o paciente está normal, só que não consegue mais identificar
rostos. Nenhum deles. Para batizar esse estranhíssimo sintoma, o médico cria o
termo prosopagnosia: uma junção das palavras gregas prosopo (“rosto”) e agnosia
(“sem conhecimento”).
O que Bodamer não sabia, e só recentemente a ciência
descobriu, é que a prosopagnosia também pode ser genética e afetar pessoas
comuns – que não levaram nenhuma pancada na cabeça. E ela é muito mais frequente
do que se pensa. Em 2006, num estudo com 689 voluntários selecionados de forma
aleatória, o geneticista alemão Thomas Grüter diagnosticou nada menos que 17
casos de prosopagnosia – o que dá 2,5% da amostra. “Existem cerca de 2 milhões
de pessoas com prosopagnosia na Alemanha. E, provavelmente, milhões delas no
Brasil”, afirma Grüter (para ser mais preciso, até 4,7 milhões). Parece um
exagero para você? O neurocientista Brad Duchaine, da Universidade de Londres,
chegou a um resultado parecido: de 1 600 indivíduos testados, cerca de 2%
tinham alguma dificuldade em reconhecer rostos.
Mas, se a doença é tão comum, por que as ruas não estão
cheias de prosopagnósicos? É que, na maior parte das vezes, as pessoas nem se
dão conta de que têm o problema. “A pessoa compensa isso, encontra outras
formas de reconhecer rostos, e sua dificuldade não aparece”, afirma Duchaine.
Pelo que já se sabe a prosopagnosia afeta todos os tipos de gente. Você,
inclusive, pode ter e não saber. Não é motivo para se jogar pela janela. Ela só
atrapalha nos casos mais fortes, quando realmente destrói a capacidade de
identificar rostos – e muda totalmente a vida das pessoas.
Se você perguntar a uma pessoa normal como ela reconhece um
rosto, provavelmente vai ouvir algo simples, do tipo: “olhando para ele, oras”.
Se for alguém com prosopagnosia, no entanto, a resposta será bem mais
elaborada. “Eu vejo como a pessoa se mexe, reparo na voz, no cabelo, no sapato,
procuro características marcantes”, diz a produtora de moda Mônica – aquela
que, no começo desta reportagem, não identificou o ex-namorado. Ela jura que
reconhece o atual namorado, apesar de o relacionamento ser recente. “Ele tem um
cabelo encaracolado, e isso ajuda bastante.” Cabelo, aliás, é uma referência
frágil. “Quando minhas clientes cortam ou mudam o penteado, é um problema. Às
vezes coloco a culpa na miopia, para não dar vexame.”
Mesmo com essas estratégias, ou justamente por causa delas,
os prosopagnósicos costumam levar mais tempo que o normal para reconhecer
alguém. “Quando encontro alguém na rua, levo alguns segundos montando um
quebra-cabeça com diferentes pistas até descobrir quem é a pessoa”, diz Mônica.
A mãe dela, Maria, também tem prosopagnosia e enfrenta ainda mais dificuldade –
chega há levar vários minutos para reconhecer as pessoas. Como todos os
prosopagnósicos, Mônica e Maria são consideradas esnobes pelas outras pessoas.
E, por causa das dificuldades que enfrentam, desenvolveram uma personalidade
tímida e reservada. “Nunca consigo reconhecer uma pessoa na segunda vez em que
a vejo. Passei a caminhar na rua de cabeça baixa, para ter a desculpa de que
não vi as pessoas caso elas me reconheçam e eu não.”
Os prosopagnósicos não têm nenhum tipo de problema de visão
e, da mesma forma que observam e guardam outros detalhes das pessoas, são
capazes de distinguir claramente se alguém está feliz ou triste. Mas o que eles
vêem, então, quando olham para uma face? “Eu não consigo ‘montar’ o rosto
inteiro. Se eu fechar os olhos, só lembro das partes, nunca do conjunto. E isso
acontece inclusive com o meu próprio rosto: não consigo imaginá-lo
mentalmente”, diz a estudante de arquitetura Patrícia, 30 anos.
Se isso já parece um pouco assustador, veja a situação dos
americanos Bill Choissier e Mordechai Housman, que estão entre os piores casos
de prosopagnosia já documentados. Choissier, que é advogado, cresceu sem
reconhecer os próprios pais. Isso afetou sua relação com a mãe e também
prejudicou sua vida profissional – como não reconhecia os juízes com os quais
trabalhava, acabou tachado de arrogante. Já o mestre-de-obras Housman não
reconhece os 3 filhos. Ele sabe que são suas crianças, mas não diferencia uma
da outra. Ou, então, a história da inglesa Zoe Hunn. Quando ela tinha 14 anos,
suas amigas a inscreveram num concurso de beleza. Ela nunca tinha prestado
muita atenção ao próprio rosto. Zoe ganhou, virou uma modelo bem-sucedida e
capa de revista. Só que ela não se reconhecia nas fotos, caiu em depressão e
teve de procurar acompanhamento psicológico. Zoe era linda, mas não sabia. E
também não sabia quem era. Terrível, não? Mas o que acontece, afinal, no
cérebro de uma pessoa que sofre de prosopagnosia?
Lembra de mim?
A doença tem dois grandes subtipos. O mais simples é a
prosopagnosia adquirida. Examinando as pessoas que sofrem desse mal, a medicina
fez uma descoberta revolucionária: existem regiões do cérebro especializadas em
processar faces (antigamente, acreditava-se que os rostos eram processados pela
mente como se fosse um objeto qualquer – uma árvore ou uma cadeira, por
exemplo). São 3 estruturas: sulco temporal superior (STS), área occipital
facial (AOF) e área fusiforme facial (AFF). A prosopagnosia adquirida surge
quando, por causa de derrames ou ferimentos, essas áreas sofrem algum dano.
Já a prosopagnosia congênita – ou hereditária – é a mais
comum, e a mais misteriosa. Até o momento, a ciência só sabe que ela tem origem
genética. O especialista alemão Ingo Kne sugere que apenas um gene seja
responsável pela condição. Mas ninguém tem pistas de qual seria esse gene.
Exames de ressonância magnética, que analisam a atividade cerebral enquanto as
pessoas realizam tarefas específicas, têm sido usados para investigar como o cérebro
funciona na hora de reconhecer um rosto em pessoas com prosopagnosia congênita.
Mas eles ainda não oferecem muitas conclusões. A falta de exames precisos
limita a capacidade dos médicos de diagnosticarem a prosopagnosia. Até agora só
existem métodos subjetivos, baseados em entrevistas e testes com os pacientes.
“Perguntamos a eles sobre alguns sintomas que sempre aparecem em casos de
prosopagnosia hereditária”, diz Thomas Grüter. “Mas tão poucos médicos conhecem
a condição, ou mesmo o termo, que se você for a um consultório e disser que não
reconhece faces o doutor provavelmente dirá que ‘é assim mesmo. Algumas pessoas
são ruins com números, outras com nomes, e isso é normal’. Talvez ele recomende
um oftalmologista.”
A má notícia é que não existe tratamento nem esperança de
cura para a prosopagnosia num futuro próximo. A boa é que, tirando os casos
mais extremos, as pessoas com esse estranho problema levam vidas relativamente
normais. Mas então para que toda essa conversa sobre a doença? “Encontrar o gene
responsável pela prosopagnosia hereditária nos ajudará a entender a base
genética do desenvolvimento do cérebro”, afirma Grüter. “E mais: a pesquisa
pode nos levar a entender como funcionam as unidades cerebrais de
reconhecimento facial.” Traduzindo em linguagem comum: entender a prosopagnosia
pode ajudar a medicina a resolver doenças mais sérias, como Alzheimer (pois uma
das conseqüências desse mal é, justamente, a prosopagnosia). Enquanto esse dia
não chega, quem sabe as pesquisas sobre prosopagnosia consigam pelo menos
aliviar as situações embaraçosas e saias-justas que tanto incomodam as pessoas
que não reconhecem rostos. Como o dia em que a vendedora Maryanna Alba não
reconheceu um cliente numa reunião, e seu chefe suspeitou de que ela nunca o
visitara antes. Ajudar Patrícia a levantar a cabeça quando caminha pela rua,
sem medo de que os conhecidos a confundam com uma antipática que não
cumprimenta as pessoas direito. Também, claro, melhorar a vida amorosa da
esquecida Mônica. E até, quem sabe, mudar a sua.
Fonte:Superinteressante-
Texto Tarso Araújo