A capa da
revista Time com data de 5 de março provocou um bom debate. Em
20 fotografias enfileiradas sobre fundo branco, ela retratou rostos de
americanos de origem latina. São homens e mulheres, de várias idades, mas todos
eles, sem exceção, morenos, de olhos sutilmente puxados. Ao centro, uma chamada
em espanhol: “Yo Decido”. Ao lado, um pequeno texto explicativo: “Por que os
latinos decidirão a escolha do próximo presidente.”
Detalhe explosivo:
numa das fotos – logo na fileira do alto, o terceiro da esquerda para a direita
– está alguém que não nasceu nem no México nem na Guatemala. Embora nenhuma das
personagens da capa esteja identificada, logo se soube que aquela pessoa,
fisicamente parecida com as outras 19 que lhe fazem companhia na capa, era
Michael Schennum, um tipo simpático de ascendência chinesa. Ele não é, nem
nunca foi, o que a revista Time chama de latino, mas está lá
para provar que os latinos existem. Foi o que bastou para que se armasse uma
grita na internet. Duramente questionada pela multidão, a revista não teve
outra saída: em questão de poucos dias, precisou pedir desculpas em seu site
pelo que chamou de “mal-entendido”.
O episódio, que já
rendeu polêmicas pertinentes, ainda vai ser muito comentado na imprensa e nas
escolas de Jornalismo. Uns dirão que a Time cometeu um deslize
ético. Outros, mais técnicos, afirmarão que houve pressa e descuido na seleção
das fotos. Haverá ainda os que falarão da força crescente das redes sociais
para fiscalizar e denunciar os desvios da mídia. Todos estarão certos, como de
costume, mas o que essa história tem de mais interessante não tem que ver
apenas com a ética ou com a técnica da atividade jornalística, assim como não
se restringe ao poder dos internautas de desmentir a famigerada “grande
imprensa”. O melhor do episódio está num campo mais vasto, mais crítico, mais
fascinante e mais incerto: ele nos leva a refletir sobre o limite da fotografia
como registro da realidade no jornalismo.
América Latina é território?
Comecemos pelo
óbvio: há fenômenos que a fotografia é incapaz de registrar. Parece uma
aleivosia dizer isso nestes tempos de culto das imagens, mas há notícias, há
fatos, há personagens que os olhos não podem ver, mas o pensamento pode saber
que existem de verdade. O jornalismo pode dar conta deles, sem dúvida, mas, aí,
as câmeras fotográficas não apenas não ajudam, como, às vezes, atrapalham. Foi
o que aconteceu agora com a Time, que tentou fabricar um fenótipo
quase individualizado para uma demografia difusa.
O equívoco da Time não
veio de um preconceito racial ou de más intenções inconfessas, mas da tentativa
de fotografar o que não tem face própria, nem pode ter. A revista quis dar
rosto a algo que não tem um rosto uniforme e, nesse artifício gráfico,
distorceu a face da América. Pior: contribuiu para estigmatizar, pela cor da pele,
pelo formato dos olhos, pela textura dos cabelos, pessoas que são tão
americanas quanto Kim Basinger, Muhammad Ali ou Louis Armstrong. A Time apontou
sua objetiva para uma demografia e captou apenas um erro de informação. Atenção
para isso: mesmo que o descendente de chineses Michael Schennum não estivesse
ali, a capa da Time com data de 5 de março seria bastante
problemática. Ou mesmo errada.
Para que se entenda
melhor a invisibilidade de que estamos falando aqui, pensemos no conceito de
América Latina. Alguém consegue demarcar no mapa, com exatidão, onde começa e
onde termina esse território? Aliás, a América Latina é território? Ou é um
conceito cultural? Será que a América Latina acaba na cerca mortal que separa o
México dos Estados Unidos? Ou ela continua para dentro do estado do Texas,
chegando mesmo à periferia de Nova York? Será que a América Latina não está,
hoje, dentro da própria alma do eleitorado americano? A revista Time,
a seu modo, diz que sim, mostrando que 9% dos eleitores americanos são latinos.
São eles, segundo a revista, que decidirão a disputa. Por isso ela quis mostrar
o rosto deles, e errou.
Crença fanática nas imagens
Os latinos não têm
um rosto homogêneo. Assim como o conceito de América Latina não tem fronteiras
nítidas na geografia, o aspecto físico dos latinos não é único, distinto de
todos os demais, pois nascem bebês de olhos azuis no Peru e em El Salvador. Há
latinos loiros e negros despejando suas escolhas nas urnas americanas, mas eles
não são um tipo físico. Os latinos da Time são reais, eles existem, mas, para
quem quiser enxergá-los um a um, no meio das massas humanas que trafegam nas
cidades americanas, eles são invisíveis. Podemos deles ter muitas imagens, mas
não podemos ter um retrato. A não ser que queiramos estigmatizá-los,
segregá-los, isolá-los, separá-los do povo – e se for esse o caso, teremos de
inventar um tipo físico e, com base nele, traçar a linha de corte, o que
poderia dar em tragédia.
De tudo isso temos
uma conclusão provisória: vídeos, filmes e fotografias não são o critério da
verdade, não são capazes de separar o que existe do que não existe. Às vezes as
fotografias só mostram uma ilusão, como ocorreu com esse estereótipo de
“latinos” que tomou de assalto a capa da Time. Quando é assim, a
fotografia é antifactual, antijornalística por definição, apenas uma miragem.
No
documentário Janela da Alma, de 2001, dirigido por João Jardim e
Walter Carvalho, o escritor José Saramago dá um depoimento difícil de esquecer:
“Foram necessários mais de 2 mil anos para que a humanidade inteira entrasse
dentro da caverna de Platão.” Para ele, a nossa civilização é prisioneira da
crença fanática que tem nas imagens. Só damos o estatuto de verdade ao que
podemos ver. Um dos muitos problemas que isso nos causou aparece agora na capa
da Time. Às vezes criamos falsos deuses, ou falsas fotos
jornalísticas, para dar traços de fisionomia ao que são apenas fantasmas da
ideologia.
Fonte: Eugênio
Bucci / Observatório da Imprensa