Tanto as crianças quanto os adultos e os idosos tornaram-se
reféns da utopia jovem, uma miragem de beleza e felicidade inatingíveis,
produzida e vendida em escala industrial.
Alguns domingos atrás, descobri a existência de Julie Lourenço, a garotinha de quatro anos que estourou no
YouTube ensinando “técnicas” de maquiagem para festa (em poucos dias, quatro
milhões de acessos). O que era para ser apenas um momento de descontração
acabou se transformando numa experiência intelectual interessante.
Por trás da aparente simplicidade, o vídeo de Julie é um
valioso exemplo da sinuca de bico em que, culturalmente, estamos todos metidos.
Intolerantes com o envelhecimento e brutalmente insensíveis
com a experiência infantil, vivemos um processo de jovialização da
cultura, no qual o ideal de juventude predomina socialmente como modelo,
algo como um patamar a ser atingido e sustentado, indefinidamente, custe o que
custar.
Maquiagem infantil
Conversando com outras pessoas a respeito do vídeo, colhi
opiniões diversas. Afinal, seria motivo de orgulho a exposição de uma criança
que, aos quatro anos de idade, já se mostra contaminada pelo imaginário
“fashionista” que pertence (ou, ao menos, deveria pertencer) exclusivamente aos
adultos?
Por outro lado, não é da natureza da criança eleger os mais
velhos como espelho? O que seria mais preocupante, o fato de Julie maquiar-se
como um adulto ou o valor excessivo que os próprios adultos atribuíram para a
atitude de Julie? (Curiosamente, quase ninguém questionou a veracidade do
vídeo).
Não é raro toparmos com adultos pouco habilidosos quando o
assunto é criança. O excesso de proteção assim como a completa falta de
discernimento diante das peculiaridades e limitações infantis são erros
bastante recorrentes – por vezes, até constrangedores. A infância deve ser
vista sem moralismos, longe dos “lugares comuns” que cercam o debate em torno
das diferenças que separam crianças, adolescentes e adultos. Aliás, é
justamente essa distinção que vem se tornando, ao longo dos anos, cada vez mais
difícil de ser identificada. É
como se os limites entre uma fase e outra, do ponto de vista comportamental –
não etário –, estivessem ficando diluídos.
Talvez seja a uniformização dos comportamentos e sua
consequente diluição das diferenças uma das chaves para compreendermos o
processo de jovialização da cultura. O simples fato de Julie maquiar-se, por si
só, já configura isso. A maquiagem específica para festas é um recurso de
sedução, pertencente ao “mundo adulto”, que se realiza como técnica de
jovialização e erotização. No momento em que uma criança incorpora tal recurso,
inevitavelmente perde parte de sua identidade.
Entretanto, o estereótipo de femme fatale não
se concretiza no rosto de Julie. Ao contrário, a maquiagem imperfeita produz
uma metáfora sutil, cômica e singela da liberdade infantil. Tal delicadeza
teria ressonância dentro de nós, adultos, e seria capaz de conduzir-nos à
inocência perdida, nostalgia de um tempo que não volta mais? Seria possível que
a imagem de Julie borrada nos olhos e nas bochechas, inconscientemente, nos
recordasse a figura lúdica, levemente grotesca e repleta de simpatia dos
palhaços? Admirar Julie corresponderia ao desejo de revisitar a própria
infância?
Do ponto de vista formal, há fortes indícios de que o vídeo
pode não passar de uma grande farsa. É notável, por exemplo, o processo de
edição ao qual foi submetido antes de cair na rede. Não faltam interrupções no
andamento da narrativa de Julie que, curiosamente, aparece a cada corte com os
olhos cada vez mais borrados. Estaria a criança sendo dirigida e maquiada
durante a filmagem? Seria apenas uma jogada de marketing na qual a mãe –
maquiadora profissional – usaria a filha para indiretamente divulgar o próprio
trabalho?
É preocupante, mas a imensa maioria de internautas que se
sensibilizou com o vídeo sequer desconfiou da espontaneidade de Julie. Este é
um dos pontos principais. Quem garante que o motivo da repercussão não seja a
maneira aparentemente ingênua e espontânea com que a garotinha investe-se da
posição não somente de adulta, mas, sobretudo, de especialista em maquiagem
(evidentemente sem sucesso, levando-se em conta parâmetros profissionais)?
As possibilidades são muitas. Na tentativa de ser adulta,
Julie reforça ainda mais sua condição de criança? Ao contrário, na tentativa de
manifestar-se como criança, revela sua adesão à mentalidade adulta? Nem uma
coisa nem outra, mas apenas manifestação de espontaneidade? Ou melhor, não
seria o rosto infantil de Julie extravagantemente borrado uma espécie de
escudo, frágil tentativa de proteção contra a erotização exacerbada e juvenil
que aflige tanto os adultos?
Infância na História
Um pouco de psicanálise e história talvez sejam úteis para a
compreensão do que pode estar em jogo no vídeo de Julie. Para Freud, a pessoa é
o que é porque, embora constantemente retocável, teve o desenho de sua
personalidade forjado durante a infância, sobretudo em seus traços principais.
Em outras palavras, pelo menos parcialmente, o olhar psicanalítico reconhece no
comportamento adulto expressões da infância, em geral inconscientes e
enigmáticas, desenvolvidas a partir de um penoso processo, no qual desejo e
repressão, impulso e limite, conflitam entre si.
No entanto, entre o fim do século 19 e o início do 20,
quando o mesmo Freud inventava a psicanálise, os tempos eram outros. A começar
pela imagem e o papel social exercido pelas crianças. Na época, pelo menos no
chamado mundo ocidental, tínhamos na figura do adulto o paradigma do pleno
desenvolvimento humano. As noções de indivíduo, normalidade, retidão,
liberdade, autonomia, maturidade, enfim, tudo aquilo que era reconhecido como
elemento constitutivo de um sujeito pleno concentrava-se na figura discreta,
sóbria e disciplinada do adulto.
Essa mesma figura atingia sua suposta perfeição quando
alcançava posição social elitizada. Ideologicamente, a imagem do bom burguês
operava socialmente como modelo. Ser homem, rico e adulto significava ser
respeitável. Não por acaso o mundo proletário, assim como o mundo infantil e o
mundo feminino, era visto como inferior.
(Coincidentemente, no quadro das relações econômicas,
sociais e políticas que predominam até a segunda metade do século 20, é notável
que tanto a “classe-média” quanto a “adolescência” permaneciam ainda como
categorias incipientes. Isso indica que o processo de jovialização da cultura
pode estar intimamente vinculado ao crescimento das camadas sociais medianas
impulsionado pelo Welfare State. Essa questão será retomada mais adiante,
entretanto, na perspectiva do desenvolvimento da sociedade de consumo).
Nem sempre a correspondência entre faixa etária, sistema
econômico e imaginário social é devidamente dimensionada. No fundo, até o fim
da 2ª Guerra Mundial – culturalmente falando – não existiam exatamente “crianças”, e sim “não-adultos”.
A passagem de um estágio para outro era abrupta e violenta,
mas, ao mesmo tempo, gradativa e natural. Essa ambiguidade é visível, por
exemplo, nas roupas que as crianças, tanto burguesas quanto proletárias,
usavam: rotas ou engomadas, não passavam de cópias diminutas da vestimenta dos
mais velhos. Em contrapartida, mesmo similares na aparência, homens e infantes
eram socialmente reconhecidos como opostos. Quem controlava o mundo eram os
adultos. Portanto a diferenciação era nítida, capaz de atravessar desde a
importância atribuída às escolhas e desejos dos pequenos, ignorados ou
rejeitados sem maiores dificuldades, até o valor da mão-de-obra.
Em nome da liberdade
Com o advento da “sociedade de consumo”, quando os países
capitalistas desenvolvidos viviam o auge do Estado de bem estar social, a
classe média cresce consideravelmente – sobretudo a partir da década de 50. A
infância passa então a ser reconhecida como nicho de mercado, assim como os
adultos e idosos. Entretanto, é na
figuração radiante e explosiva do jovem que a indústria apostará a maior parte
de suas fichas. Preconizada durante o Romantismo, retomada pelas
vanguardas e consolidada pelo movimento beat, a juventude como símbolo da
plenitude humana atinge dimensões mercadológicas e globalizadas através da
contracultura, com a explosão do rock’n’roll.
Muito da rebeldia juvenil que vigorou nesse período colocava
em ameaça algumas das principais bases do sistema capitalista. Seja no desapego
aos bens materiais e na assimilação de formas de religiosidade e socialização
orientais característica dos hippies, seja no esquerdismo romântico e
libertário do movimento estudantil, a juventude protagonizava, com criatividade
ingênua, uma tentativa revolucionária de transformação do mundo.
Mas em pouquíssimo tempo o sonho acabou. Reduzida apenas à
condição de mercadoria, a rebeldia juvenil tornou-se um estereótipo da
liberdade. Na década de 70, a indústria cultural já adquiria seu poder mágico
de espalhar-se pelo mundo e invadir as mais variadas culturas manifestando-se
como um estilo de vida consumível, um jeito de se expressar e se vestir com
prazo de validade, a saber, a fase da juventude – o breve espaço de tempo que
separa a criança do adulto – ou o curto intervalo entre uma tendência e outra
que, desde então, passa a caracterizar a moda voltada para as massas.
É exatamente este o marco inaugural do processo de
jovialização da cultura. A partir daí, a vitalidade, a coragem, a beleza, a
impulsividade, enfim, tudo aquilo que foi condensado na figura juvenil desde o
Romantismo, passa a ser cuidadosamente explorado pelo marketing. Dos yuppies
dos anos 80 aos hipsters do século 21, toda a energia supostamente ameaçadora
da juventude é convertida numa pseudo-originalidade inteiramente articulada às
demandas de mercado.
A ditadura do novo
Na essência, essa padronização dos comportamentos não deixa
de ser um tipo de ditadura cultural – até porque, embora as ditaduras não sejam
unânimes, elas se consolidam trucidando tudo aquilo que lhes aparece como
obstáculo ou empecilho.
Basta analisarmos o arco de possibilidades de satisfação
pessoal oferecidos em massa para qualquer um tenha acesso à televisão e
internet. Em primeiro lugar, devemos ser ricos: a partir daí, teremos condições
de lutar para permanecermos jovens por tempo indeterminado. Afinal, quanto
custa uma alimentação orgânica e saudável incrementada por vitaminas e
suplementos, uma lipoaspiração combinada com algumas aplicações de botox, um
carro novo e potente, uma viagem que contemple a prática de esportes radicais,
a mensalidade de uma boa academia de ginástica, uma noitada numa balada repleta
de “gente bonita”?
A eternização da juventude é praticamente uma religião. Pode
até ser fascinante e, evidentemente, produtora de muito prazer e euforia.
Ocorre que nosso admirável mundo novo – high tech, clean e virtual – ainda não
se despiu totalmente da sua velha roupagem. Competição, sofrimento, injustiça,
frustração, tudo isso ainda existe, permeia a vida em sociedade e está longe de
desaparecer.
O próprio avanço tecnológico que ampliou as possibilidades
de comunicação e socialização também trouxe como consequência o aumento
significativo da carga de trabalho. A qualquer momento, via iphone, tablet,
notebook etc, estamos sujeitos às solicitações profissionais – o que significa
que disciplina, discrição e sobriedade continuam sendo características indispensáveis
para a sobrevivência no mundo real.
A situação se agrava se levarmos em conta que, tanto na
produção artificial da juventude quanto na “guerra de todos contra todos” em
busca do pão de cada dia, muita gente se encontra controlada e oprimida por uma
dose excessiva de cobranças – no caso, não apenas as impostas pelo jogo social,
mas também as que brotam da própria consciência.
Diferentemente de épocas passadas, a formação subjetiva não
mais se realiza tendo como fundamento principal a repressão. Antigamente,
suportar a frustração do desejo imediato significava superar impulsos, e,
portanto, conquistar autonomia.
O problema é que boa parte de nossas crianças vive hoje numa
espécie de ilha da fantasia e do terror. Desconhece limites, pois, aqueles que
deveriam encarregar-se da tarefa repressora, os adultos, não conseguem sequer
libertar-se de seus sonhos – e pesadelos – juvenis. Assim, o curto-circuito
está armado: tanto crianças quanto adultos tornaram-se reféns da utopia jovem,
uma miragem de beleza e felicidade inatingíveis, produzida e vendida em escala
industrial.
Pode não ser mero acaso o fato de que, nos últimos anos, analgésicos,
antidepressivos e estimulantes sexuais estejam liderando o ranking dos
remédios mais vendidos no Brasil. Neste mundo de feição esquizofrênica, no qual
a fixação do estilo de vida aventureiro tipicamente juvenil e as severas
exigências de um mercado de trabalho cada vez mais competitivo ocupam o mesmo
espaço, o vídeo de Julie – mesmo com cheiro de farsa – também não deixaria de
ser, romanticamente, uma espécie de monumento de resistência, capaz de manter
viva na memória a certeza de que alguma espontaneidade, livre das pressões
socialmente estabelecidas, merece ainda existir?
Resta saber se nós, adoradores da “estátua infantil”, e
também as próximas gerações, teremos condições de superar ao longo de nossas
vidas o maior de todos os dilemas da existência. O processo de jovialização da
cultura alimenta-se vorazmente do humano – demasiado humano! – medo da morte. É
no terror provocado pelo fim que encontramos as raízes da aversão que temos
pelo envelhecimento hoje em dia. Enquanto isso, a ideia de amadurecimento pode
estar prestes de ser abolida da humanidade.
E é justamente essa desconexão com a vida real, esse
absoluto desprezo pelo tempo, o maior engodo que o vídeo de Julie pode nos
oferecer. Afinal, como pensou uma vez Montaigne, “quem ensinasse os homens a
morrer, os ensinaria a viver”.
Fonte: papodehomem por Christian Gilioti