O relato abaixo é uma ficção, mas construída com fragmentos
de casos clínicos reais. Pessoas como Teresa sofrem apotemnofilia, hoje
conhecida como desordem de identidade da integridade corporal (DIIC), um
transtorno caracterizado pelo desejo de ter algum membro amputado.
Não sei se alguém poderia ter salvado Teresa de uma morte
dessas. Está certo que muito equilibrada ela não era, mas olhando de perto,
quem é? Se ela sentia atração por homens amputados, qual o problema? Como
poderia adivinhar eu que ela faria uma loucura dessas? Está certo...,
recentemente ela não apenas sentia atração por caras amputados, como também
queria que lhe amputassem a perna. Sim, sim, eu sei, nunca vi..., e agora
percebo que quem sabe deveríamos ter feito alguma coisa. Bom, eu fiz a mandei
ao médico. Amiga é para isso. Fui até junto. A conversa no consultório foi uma
loucura... Doutor, eu quero amputar minha perna esquerda..., aqui... Bem acima
do joelho. Como? Qual o problema com sua perna? Está doendo? Não, não dói, mas
não quero mais ter minha perna..., sério... Acho que eu nunca deveria ter
tido..., eu quero que o senhor a ampute. Deixa ver se entendi... Sua perna não
dói, não tem nenhuma deformidade, ferida, cicatriz..., funciona bem, mas mesmo
assim você quer que a amputem? Sim, isso, aqui, bem acima do joelho. Bom, nem
preciso dizer que o médico a encaminhou ao psiquiatra, mas ela nunca foi, e
olha que eu insisti. O psiquiatra não vai amputar minha perna, não adianta, não
vou. E foi isso. Depois de uns dias a encontrei na rua. De muletas! Meu Deus
pensei, ela amputou!!!! Mas não, tinha enfaixado de um jeito que parecia mesmo,
tinha até cortado a perna da calça e tudo. Tê, que é que é isso, você ficou
louca? Me deixa, eu faço o que eu quero. E foi isso. Andava para cima e para
baixo de muletas e com a perna enfaixada, e todo mundo pensando que fosse
manca. Antes de chegar em casa escondia as muletas e tirava a faixa para não
assustar a mãe, mas ao final já nem se importava.
Acho que foi nesse tempo que ela começou a namorar um cara
que ela dava encima faz tempo, manco, claro. Manco de verdade. Com perna
ortopédica. Até pensei que tinha sido ele que a mandou enfaixar a perna. Mas
parece que não foi não... Ficou com esse cara uns dois meses e estava bastante
feliz. Bom, nunca a vi tão feliz, mas era só chegar em casa, tirar a faixa e já
ficava de cara amarrada na frente do espelho.
Mas acho que a coisa complicou mesmo quando o namoro acabou.
Não saia de casa. Fui lá umas duas vezes. A mãe estava aflita. Na vez que
estive no quarto dela perguntei Por que vocês brigaram? Ele ficou puto comigo
por esse negócio das muletas..., acha que faço por causa dele e ele fica com
vergonha..., disse que eu nem sabia a merda que é ser manco de verdade e que eu
tinha que parar com essa frescura. Bom, por um lado estava triste pelo fim do
namoro, mas pelo menos parou com esse negócio de amarrar a perna. Pensei que as
coisas estavam melhorando. Mas aí ela sumiu. Disto faz o que..., uns vinte
dias? Imagina a mãe como estava, pensamos em sequestro, chamamos a polícia,
tudo..., mas aí uns dias depois ela ligou e falou que estava bem, que não era
para se preocupar.
Bom, e é isso, não soubemos mais nada até que chamaram do
hospital. Ela já estava em coma. Imagina! A encontraram desmaiada no hotel. O
resto você já sabe. O médico disse que ela colocou a perna em gelo seco por
muitas horas e que quando chegou ao hospital já era tarde. Tentaram amputar mas
a gangrena tinha invadido o corpo todo.
No caso do relato acima, a protagonista apresenta dois
componentes que nem sempre estão associados: apotemnofilia e a atração sexual
por pessoas amputadas (acrotomofilia).
O drama de pessoas com apotemnofilia foi recentemente
retratado em filme e colocou em discussão o direito que estas pessoas têm de
ver seu desejo atendido. Salvo exceções médicos se recusam a fazer este tipo de
amputação. Mas esta negativa é ética? Não é função da medicina acabar com o
sofrimento humano?
Trailer oficial do filme Armless.
Pacientes com esse transtorno não encontram alívio com
nenhum tratamento psicoterápico ou farmacológico, o que os leva a medidas extremas,
com as de Teresa. Quando conseguem a amputação (alguns chegam a colocar o
membro indesejado baixo as rodas do trem; outros, como Teresa usam gelo seco
para provocar lesões irreversíveis que obriguem a amputação) se sentem
realmente felizes com a nova situação.
Recentemente, a neurociência jogou luz sobre este estranho comportamento, motivo que levou à adoção da denominação DIIC (em inglês BIID, body integrity identity disorder) e ser incluída como transtorno neurológico.
Antes de tentar explicar a base biológica do DIIC é necessário lembrar como nosso cérebro cria a imagem do nosso corpo. Usaremos como exemplo a perna de Teresa.
Em condições normais, o cérebro é informado sobre a existência da perna por causa dos receptores que informam sobre a posição, movimento, toque, temperatura, etc. Esses receptores são estruturas microscópicas distribuídas na pele, músculos, articulações, ossos, e outros tecidos. Eles transformam energia mecânica (qualquer toque, beliscão, golpe, estiramento aplicado fora ou dentro da perna) ou térmica na única linguagem que o cérebro é capaz de entender: potenciais elétricos da ordem de milivolts, em um processo denominado transdução. Esses potenciais trafegam através dos nervos e chegando ao cérebro começam a ser processados, atingindo inicialmente as áreas de processamento primário (área somatossensorial primária ou S1, ver figura abaixo). Também os olhos e seus receptores visuais na retina levam ao cérebro informação sobre a perna. Esta informação –agora visual- alcança inicialmente o córtex visual primário (V1). Das áreas primárias S1 e V1, essas informações táteis e visuais alcançam outra região localizada no lobo parietal superior direito (LPSD), onde toda a informação sensitiva se junta com a informação motora (M1) que nos permite movimentar a perna. Só quando a informação é integrada no LPSD é que sentimos a perna como nossa.
Recentemente, a neurociência jogou luz sobre este estranho comportamento, motivo que levou à adoção da denominação DIIC (em inglês BIID, body integrity identity disorder) e ser incluída como transtorno neurológico.
Antes de tentar explicar a base biológica do DIIC é necessário lembrar como nosso cérebro cria a imagem do nosso corpo. Usaremos como exemplo a perna de Teresa.
Em condições normais, o cérebro é informado sobre a existência da perna por causa dos receptores que informam sobre a posição, movimento, toque, temperatura, etc. Esses receptores são estruturas microscópicas distribuídas na pele, músculos, articulações, ossos, e outros tecidos. Eles transformam energia mecânica (qualquer toque, beliscão, golpe, estiramento aplicado fora ou dentro da perna) ou térmica na única linguagem que o cérebro é capaz de entender: potenciais elétricos da ordem de milivolts, em um processo denominado transdução. Esses potenciais trafegam através dos nervos e chegando ao cérebro começam a ser processados, atingindo inicialmente as áreas de processamento primário (área somatossensorial primária ou S1, ver figura abaixo). Também os olhos e seus receptores visuais na retina levam ao cérebro informação sobre a perna. Esta informação –agora visual- alcança inicialmente o córtex visual primário (V1). Das áreas primárias S1 e V1, essas informações táteis e visuais alcançam outra região localizada no lobo parietal superior direito (LPSD), onde toda a informação sensitiva se junta com a informação motora (M1) que nos permite movimentar a perna. Só quando a informação é integrada no LPSD é que sentimos a perna como nossa.
Nesta vista lateral do
encéfalo humano foram representadas as áreas somatossensorial primária (S1),
visual primária (V1) e motora primária (M1). Todas enviam informação para a
região do lobo parietal superior direito (LPSD). No LPSD a informação sobre
cada parte do corpo é integrada de forma a construir o mapa corporal. Em
casos de DIIC, o fluxo de informação ou o processamento no LPSD está
comprometido, o que leva à rejeição de determinadas partes do corpo. Detalhes
no texto.
|
Os cientistas suspeitaram que caso algo perturbasse esse fluxo de informação, a
imagem corporal poderia ser comprometida. Para verificar essa possibilidade
recrutaram quatro voluntários com DIIC, três desejavam ter sua perna esquerda
amputada e um deles as duas. Durante o experimento, estimularam levemente os
pés e registraram a atividade elétrica do cérebro usando magnetoencefalografia.
As respostas dos pacientes com DIIC foram comparadas com quatro voluntários
normais (grupo controle).
Neste grupo controle a estimulação tátil do pé, tanto do direito quanto do esquerdo, levou a uma atividade elétrica típica no LPSD. Nos três voluntários com DIIC que desejavam ter a perna esquerda amputada, a estimulação do pé direito provocou uma atividade elétrica normal no LPSD, enquanto que a estimulação do pé esquerdo não provocou ativação nenhuma. No voluntário que desejava ter ambas as pernas amputadas, nem a estimulação do pé direito nem a do esquerdo foi capaz de provocar qualquer reação no LPSD.
Imagem magnetoencefalográfica
da vista superior do hemisfério cerebral direito. No círculo amarelo a região
do LPSD. AS figuras A e B representam os indivíduos controle. Em C se observa
ativação de um indivíduo com DIIC após estimulação do pé "normal" e
em D não se observa atividade nenhuma ao estimular o pé que o paciente
desejava ver amputado. Maiores detalhes no texto (McGeoch, P.D. e cols.,
2009).
|
Esses resultados corroboraram a hipótese dos pesquisadores relacionando o DIIC com um funcionamento anormal do LPSD. Nesta situação o cérebro não é capaz de integrar informações sobre a perna e não a incorpora dentro da imagem corporal que ele constrói. Como resultado pacientes com DIIC sentem esse membro redundante e estranho ao corpo, e experimentam um forte desejo de se desfazer dele.
Aparentemente esta deficiência no processamento da informação no LPSD é congênita. A circuitaria cerebral que forma a representação do nosso corpo é formada durante a própria formação do cérebro no ventre materno, e por algum motivo nesses pacientes ela falha. Assim, indivíduos com DIIC sofrem com este transtorno desde a infância, embora não consigam explicar o motivo dessa percepção anômala do próprio corpo. O fato é que não existe ainda nenhum tratamento que corrija este distúrbio. Todos os procedimentos psico ou farmacoterapeuticos falham já que o erro está na própria conectividade cerebral. Atender o desejo do paciente e amputar o membro parece ser a única forma de aliviar seu sofrimento. E realizar o procedimento cirúrgico em condições hospitalares é a única garantia de que tragédias como as de Teresa não continuem a acontecer.
Fontes: Coluna Ciência.
-McGeoch, P.D. et al (2009). Apotemnophilia – the neurological basis of a ‘psychological’ disorder. Nature Precedings DOI: 10101/npre.2009.2954.1.
-The science and ethics of voluntary amputation. Mo Costandi, The Guardian. May 2012