É do sonho da vítima que nasce a oportunidade do bandido.
O enredo do tráfico de seres humanos é quase sempre o mesmo. A proposta é
tentadora. A necessidade, enorme. A desconfiança, nenhuma. Foi assim com
Luísa*, uma maranhense de pele negra e curvas generosas, moradora de Abolição,
periferia do Rio de Janeiro, que, aos fins de semana, frequentava danceterias
de pagode para se divertir e esquecer da rotina difícil de empregada doméstica.
Aos 32 anos, estava recém-separada do marido e tinha três filhos – a menor, de
apenas 1 ano – quando sua vida mudou.
Foi no pagode que surgiu a proposta. Ela e uma amiga,
Cláudia*, receberam o convite tentador de Rosana, uma mulher que conheceram nos
bailes. Ela propôs que as amigas fossem para Israel, trabalhar como
garçonetes em um restaurante brasileiro de Tel Aviv. O salário: US$ 1.500
por mês. “Era muito mais do que eu poderia ganhar com as minhas faxinas”, diz
Luísa. “Se eu ficasse lá um ano, daria pra juntar o dinheiro para realizar o
sonho de comprar uma casa. Aceitei.”
Antes de embarcar, Rosana mandou Luísa e Cláudia comprarem
roupas longas e discretas. “Ela falou pra gente levar bastante saia comprida,
porque em Tel Aviv não se podia andar muito à vontade, como no Rio”, diz Luísa.
“Não desconfiamos de nada.” Tiraram passaporte, receberam a passagem de ida e
algum dinheiro adiantado. As duas não sabiam dizer nem meia dúzia de palavras
em inglês, tampouco de hebraico. Nunca tinham saído do Brasil, mas não se
intimidaram. No aeroporto, diante dos cartazes da Polícia Federal que alertavam
para o crime de tráfico humano, nenhuma das duas se identificou com a mensagem.
“Na minha cabeça, eu estava indo trabalhar fora para conseguir o melhor para
os meus filhos. Nunca imaginei encontrar aquela cena que encontrei quando
cheguei”, diz Luísa.
Ao sair do aeroporto em Israel, as amigas tiveram que
entregar seus passaportes para os israelenses e foram separadas. Luísa
foi imediatamente levada para um prostíbulo. “Olharam para mim e me
disseram: ‘Troca de roupa e vai trabalhar’. Comecei a chorar, desesperada. Mas
as outras brasileiras que já trabalhavam na boate me disseram para não me
recusar, porque eles iriam me bater, me deixar com fome, ou até sumir comigo.
As meninas me maquiaram. “Coloquei um shortinho e um sutiã e fiquei no sofá do
salão, exposta como mercadoria.”
Sentada naquele sofá de cabaré, Luísa começava a
entender que Rosana não era uma colega de danceteria. Era aliciadora de uma
das muitas quadrilhas que, todos os anos, levam centenas, mesmo milhares, de
brasileiros para o exterior, iludidos pela promessa de trabalho garantido e bem
remunerado. Para ganhar os US$ 1.500 mensais que lhe foram prometidos, ela
teria que fazer sexo com 20 homens por noite. “Eu nunca tinha sido garota de
programa, era tudo muito nojento. A boate abria até aos sábados, que é um dia
santo para os judeus. No primeiro mês, eu fazia programa com 6, 7 homens por
noite e tudo o que consegui foram 600 dólares, que enviei para minha mãe”, diz
Luísa. “Eu e Cláudia só pensávamos em dar um jeito de escapar dali.”
O drama das brasileiras durou quatro meses. Cláudia
vasculhou o apartamento em que estava encarcerada e encontrou o passaporte.
Descobriu também o endereço do Consulado Brasileiro em Tel Aviv. O plano delas,
traçado nas raras noites de folga das duas, era fugir das boates de madrugada e
pedir proteção ao órgão brasileiro. Não deu tempo. “Eles descobriram o plano
um pouco antes da nossa fuga. Pegaram a Cláudia, bateram muito nela. Quando
acharam que ela estava morta, enrolaram ela em um lençol e deixaram na rua, do
lado do passaporte dela. A polícia encontrou, chegou a levar para o hospital,
mas ela já estava com morte cerebral.” A execução de Cláudia acabou ajudando
Luísa, e outras oito mulheres, a voltar para casa. O crime chamou a atenção das
autoridades locais e brasileiras e ela conseguiu ser resgatada. Alguns
integrantes da quadrilha foram presos em flagrante quando a polícia estourou o
cativeiro das vítimas. Mas o braço brasileiro da máfia não foi pego.
UM DRAMA INVISÍVEL
Mais de dez anos depois, Luísa trabalha como empregada
domestica. Ganha R$ 800 por mês, mora de favor na casa da mãe, um dos seus
filhos se envolveu com o crack. Ela jamais conseguiu comprar a casa que
tanto sonhou. Sempre teve vergonha de contar a própria história. Do seu
jeito simples, olhando para o chão, ela se pergunta: “Quem iria acreditar que
eu fui uma vítima e não achar que eu fui ser garota de programa nessas
condições porque eu quis?”.
JÉSSICA, A PERSONAGEM DE CAROLINA DIECKMANN
NA NOVELA "SALVE JORGE"FOI INSPIRADA NO DRAMA DE CLÁUDIA (FOTO:
DIVULGAÇÃO)
A autora de novelas Glória Perez acreditou.
Mais do que isso, abraçou a causa e resolveu tratar do tráfico de
pessoas na nova novela das 9h, "Salve Jorge", que estreou no fim
de outubro. A protagonista da trama, Morena (interpretada por Nanda Costa)
traduz em imagens a dor, até pouco tempo anônima, de Luísa. Cláudia foi
vivida pela atriz Carolina Dieckman. “Sempre me chamou a atenção dramas
invisíveis, que estão na cara de todo mundo, mas as pessoas não veem”, disse
Glória Perez. “O tráfico humano é isso, um crime invisível
que produz uma carga de sofrimento tão grande e que, no entanto, pouco se
consegue fazer para solucionar.”
CRIME BILIONÁRIO
Para escrever a trama, Glória Perez estudou o assunto por
dois anos. Ao final da pesquisa, estava mais alarmada do que no começo. O
tráfico internacional de pessoas é a terceira atividade ilegal mais lucrativa
do mundo, atrás apenas do tráfico de drogas e armas. De acordo com um
relatório da Organização das Nações Unidas havia, em 2010, 140 mil mulheres
traficadas na Europa e exploradas sexualmente. Juntas, elas fariam cerca de 50
milhões de programas sexuais por ano, a um valor médio de 50 euros cada, o que
representa um lucro anual de 2,5 bilhões de euros, ou R$ 6,5 bilhões. Em torno
de 80% das pessoas traficadas são mulheres ou meninas, destinadas a ser
exploradas sexualmente, como aconteceu com Luísa. O restante das
vítimas são homens, mulheres e crianças mantidos em condições análogas à
escravidão, normalmente, em trabalho agrícola ou fabril – realidade
frequente nas oficinas têxteis do bairro paulistano do Bom Retiro, onde
imigrantes bolivianos costumam cumprir jornadas extenuantes sem remuneração e
em condições sub-humanas. “Tem aumentado também a frequência do tráfico
internacional de jogadores de futebol, modelos e até de cozinheiros de
restaurantes étnicos”, afirma a ministra Luiza Lopes, diretora do
Departamento Consular e de Brasileiros no Exterior do Itamaraty. “Quando se dá
conta, o jogador está em um clube pequeno no interior do Cazaquistão, sem
contrato, sem visto, ficando preso por dívidas com aparelhos esportivos. Ou a
modelo fica fazendo catálogo de loja de Departamento de fundo de quintal. Já
tivemos que repatriar algumas pessoas nessas condições.”
Fora do país, a vítima está refém dos traficantes.
“A pessoa traficada costuma ter o passaporte retido pelos criminosos, raramente
fala o idioma local, é impedida de ir embora por dívidas ou por ameaça de morte
e ainda pode ser presa e deportada pela autoridade estrangeira”, afirma
Jaqueline Leite, coordenadora do Centro Humanitário de Apoio à Mulher (Chame),
que já trabalhou com vítimas de tráfico na Suíça e no Brasil. “A rotina delas é
controlada, o contato com a família também. Os traficantes esperam ter bastante
lucro com a pessoa, por isso não a libertam facilmente”.
Acuadas, elas raramente procuram a ajuda da polícia.
“Nos últimos 20 anos, a Polícia Federal abriu apenas 867 inquéritos para
investigar tráfico de pessoas. É uma subnotificação total. Sabemos que centenas
de brasileiros são levados para fora todos os anos e se tornam vítimas desse
crime, especialmente para Portugal, Espanha, Itália e Alemanha”, afirma a
senadora Lídice da Mata (PSB-BA), relatora da CPI do Tráfico Humano. A senadora
que em dezembro apresentou um projeto de lei que pretende melhorar a legislação
brasileira na repressão contra o tráfico humano. “Hoje, o Código Penal pune o
tráfico de mulheres para exploração sexual, mas não fala sobre aquelas pessoas
traficadas para o trabalho servil, queremos corrigir isso.” A proposta trata
esse tipo de tráfico como “Crime contra a dignidade humana” e enuncia ser crime
“Agenciar, aliciar, recrutar transportar, transferir, alojar ou acolher pessoa,
por meio de ameaça, coação ou qualquer outra forma de violência, sequestro,
cárcere privado, fraude, engano, abuso de poder, financiamento, corrupção, ou
qualquer outro meio análogo, para fins de exploração de alguém,
independentemente de seu consentimento”. Além disso, prevê que as punições para
traficantes de pessoas sejam tão severas quanto às aplicadas aos traficantes de
drogas e armas.
POUCA INVESTIGAÇÃO
Além de aprimorar a lei, é preciso combater os mitos e
preconceitos que rondam o assunto. “As próprias vítimas se culpam pelo que
passaram e não denunciam”, afirma Paula Dora, delegada da Polícia Federal que
atuou no combate ao tráfico de pessoas por três anos. “A pessoa não quer voltar
e decepcionar a família, que espera que ela ajude a melhorar de vida. E há
muita ingenuidade também.” Segundo a delegada, antes de fazer qualquer viagem
para o exterior a trabalho, as pessoas precisam pesquisar a idoneidade da
empresa, ter certeza de que estão indo com um visto de trabalho, que as
passagens de ida e volta estão compradas conforme o combinado. “Qualquer proposta
que pareça muito milagrosa e lucrativa tem grandes chances de ser uma
enganação”, diz Paula.
A ingenuidade que vitimou Luísa também ceifou a vida de
Simone Borges, de 25 anos. Ela queria se casar. Decidiu passar três
meses na Espanha, onde, trabalhando como doméstica, esperava ganhar os R$ 6.000
que financiariam a cerimônia. A proposta, como quase sempre acontece,
partiu de uma conhecida do bairro vizinho. “Quando chegou lá, ela disse que foi
obrigada a se prostituir, que aquilo não era jeito de gente viver. Pediu que
avisássemos a Polícia, falou que precisava de ajuda”, conta João Borges, pai de
Simone. A família pobre, de Goiânia, pouco teve o que fazer. Simone, uma mulher
saudável, morreu repentinamente. “Me disseram que eu tinha 72 horas para trazer
o corpo de volta para o Brasil, senão ela seria enterrada como indigente.
Pensei em vender a única casa que eu tenho pra trazer o corpo dela, mas o
Itamaraty acabou ajudando. Quando chegou aqui, os exames mostraram que ela
tinha sido envenenada.” De acordo com João, nenhum dos responsáveis pelo
tráfico e pela morte de Simone foi punido. No caso de Luísa, o desfecho foi
parecido. “A mesma máfia que me levou para Israel continua atuando em
Copacabana”, afirma ela. Tanto João quanto Luísa superaram, ao menos em parte,
o medo de lembrar e de contar a própria história. “Agora, ninguém mais vai
fazer mal a minha filha. Mas eu vou continuar lutando. O que eu não pude fazer
por ela, vou tentar fazer pelas outras pessoas que são vítimas desse crime”,
diz João.
HISTÓRIA REAL: ELA QUER SABER DE ONDE VEIO
Um dos crimes contra a dignidade humana abordados em Salve
Jorge é a adoção ilegal internacional de crianças. Embora não seja considerado
tráfico, o comércio de bebês não é um crime menos cruel.
Tecnicamente,
o tráfico pressupõe a exploração financeira da vítima por um tempo, o que não
acontece na adoção. “Não temos registros recentes de crianças nessas
condições. É difícil passar por um aeroporto levando um menor de idade”, afirma
a ministra Luiza Lopes, do Itamaraty. Nem sempre foi assim.
Leia o depoimento
de Kharla Livingston, uma brasileira de 31 anos, vendida para um casal francês
quando era recém-nascida.
Aos 3 ou 4 anos de idade, descobri que era adotada. Meus
pais me contaram que eu tinha nascido em São Paulo, no dia 8 de julho, e não me
deram mais detalhes por muito tempo. Fui criada de uma maneira estranha. Eles
eram controladores, não gostavam que eu saísse muito de casa, praticamente só
tive convívio familiar até a adolescência. Perto da idade adulta, disse aos
meus pais que queria ir ao Brasil para me entender melhor. Sempre me senti fora
de lugar. Então, eles me contaram a história toda. Minha mãe tinha perdido
alguns bebês antes de eu chegar e os dois achavam o processo de adoção legal
lento demais. Por isso, pagaram uma pequena fortuna, que não sei calcular, a
uma senhora brasileira que me entregou a eles.
O que eu sei é que minha mãe
biológica era muito jovem, tinha por volta de 17 anos, quando engravidou.
Acredito que ela morasse em uma fazenda no Paraná. Meu pai biológico era um
homem notável, casado e com três filhos. Tiveram um relacionamento na década de
80, e ela acabou ficando grávida. Teve de esconder sua gravidez e
procurar por uma solução. Aparentemente, ela teve a ajuda de um padre, que
lhe sugeriu deixar o bebê para adoção. Creio que foi acolhida em uma casa para
mães jovens solteiras. Me deu à luz entre o final de junho e o começo de julho
por cesariana, em Curitiba. Fui trazida em um fusca azul para São Paulo, e de
lá fui levada para a França.
Não sei se fui roubada de minha mãe biológica. Tenho a
sensação de que esse é um episódio difícil não só para mim, mas para ela.
Gostaria de encontrá-la para lhe dizer ‘não se sinta culpada. Por favor, vamos
nos encontrar, eu adoraria lhe contar minha história’. Também gostaria de
conhecer meu pai biológico, para ver as semelhanças que temos, já que nunca
consegui ver meus traços em outras pessoas. Kharla não é meu nome de registro,
mas uso este porque não quero ser facilmente identificada. Manter meu nome em
sigilo é importante, pois a senhora que me traficou ainda está viva e mora em
Fortaleza. Sei que ela levou cerca de 200 crianças para a Europa e para os
Estados Unidos. Depois que eu descobri a verdade, tive uma depressão profunda
por cinco anos. As pessoas mentiram para mim. É muito difícil seguir em frente
sem saber de onde eu vim. Espero que quem leia isso não cogite fazer uma adoção
ilegal. É impossível construir sua felicidade fazendo tanto mal a um bebê. “Hoje,
moro em Paris, mas pretendo aprender português e mudar para Curitiba.”
Fonte: Marie Claire