Os muito cultos que me desculpem, mas não se levar a sério é
fundamental. No meio da semana, resolvi fazer uma lista sobre pudores
eletrônicos que andam criando barreiras antissépticas contra tudo o que é
popular.
Era a maldita pulga que me roça as orelhas todo início de
ano desde 2002, quando começaram as inserções do Big
Brother Brasil. A pulga, neste ano, veio com uma dúvida: não é curioso que as
redes sociais tenham surgido mais ou menos na mesma época em que os reality
shows se tornaram uma febre?
não é curioso que as redes sociais tenham surgido mais ou
menos na mesma época em que os reality shows se tornaram uma febre?
Foto: Galeria de Eurritimia/Flickr
Curioso é. Pouco antes de Mark Zuckerberg gritar eureka ao
notar o sucesso das fotos de pessoas conhecidas compartilhadas pelo mesmo
grupo, o tal John de Mol já havia percebido que poderia atrair uma multidão de
gente para a frente da tevê confinando gente daquela gente e expondo todos os
dias os seus hábitos mais banais.
Foram duas sacadas que marcariam os hábitos dos espectadores
da última década. Pelo simples prazer de espiar? Vouyerismo assumido?
Talvez.
O golpe certo me parece – e isso é só uma tese de botequim –
foi que essas ideias provocaram um sentimento duplo em um público imenso,
dentro ou fora da tela: a vaidade e a crueldade.
Nos reality shows, a fórmula parece partir da
premissa de que basta colocar uma câmera e mais de dois seres humanos numa
gaiola para testemunhar, em poucos minutos, o início de uma guerra nuclear.
Antes de o programa ir ao ar, os tais jogadores se
apresentam dizendo uma série de obviedades. “Gosto de desafios”, “tenho gênio
forte, mas gosto de trabalhar em equipe”, “sou uma pessoa verdadeira”, “meu
maior defeito é minha sinceridade”, “vivo de aventuras”.
Só quem está na frente das câmeras acredita nisso. Quem está
do lado de fora, ou mesmo na edição e direção do programa, sabe que, em poucos
dias, o sujeito que se apresentou como semideus era, na verdade, uma
besta-fera. Uma besta-fera que se contradiz, que mente, que sacaneia, que forma
grupos (como as panelinhas das escolas, nerds de um lado,
populares de outro), que espalha picuinha, que chora, que se infantiliza, que
se desespera.
Para o público, que acompanha aquilo tudo com uma
metralhadora moral, poder punir um deslize ou desvio de caráter com um simples
telefonema é quase um sonho de consumo. O ápice que a interatividade poderia
conceber.
De quebra, o espectador pode dormir com a sensação de que,
apesar do sofá rasgado e da barriga avantajada, o gostosão ou gostosona
descolados do Big Brother são pessoas ainda mais deploráveis do que ele – que
ainda não foi flagrado pela câmera do elevador coçando o nariz.
Pela mesma lógica, não é de se estranhar que faça tanto
sucesso um programa mostrando o dia-a-dia de madames a estourar champanhe às
dez da manhã. Elas não sabem, mas provocam uma sensação de bem-estar diante de
um público supostamente enojado com aquela afetação e desperdício. “Não sou
rico, mas não sou tosco”.
Por algum motivo, as ricaças aceitaram participar do
programa e se deixaram exibir. Simplesmente porque não têm ideia de que, do
outro lado da câmera, são alvo de chacota, piada, ódio. Vivendo numa bolha,
alimentaram uma projeção que não confere com a imagem que o público tem delas.
A decadência humana é o que explica a busca pela audiência, e não o glamour que
elas acreditam exposto. É um espelho de imagem invertida.
E se para cada sentença existe um carrasco, é de se supor
que, se alguém se deixou ser filmado, é natural que alguém queira espiar.
Gostar ou não, com o perdão do pleonasmo, é só uma questão de gosto. Nada que
vá ancorar a produção (intelectual ou fabril) da Nação.
Mas como tudo é assunto sério nesta vida de humores
condenáveis, vale lembrar que, como num reality show, a vida em
rede é também um jogo de espelho. Ninguém além Zuckerberg acertou tão em cheio
ao pensar numa comunidade virtual em que pudessem conviver não só os amigos, os
colegas, os fãs e ídolos, mas sim as projeções manifestadas de cada um. Por
isso o Facebook se tornou o terreno propício para esforços delirantes de autoafirmação.
E que, como em qualquer comunidade (a escola, a igreja, o trabalho), cria
códigos próprios de identidade. “O que eu sou é exatamente o que eu quero (ou
querem) de mim. E para ser é preciso ser aceito”.
Vai ver é por isso que as pessoas são sempre tão mais
interessantes, bonitas e felizes quando se apresentam numa rede social. Lá,
como numa jaula do BBB, elas formam grupos e se reconhecem sob figurinos
próprios. Como um clã.
O esforço é notável e atinge tanto o religioso fervoroso
(que, mais do que ele, precisa convencer a plateia da própria fé), o devasso
solteiro (solidão, que nada), o cidadão engajado (precisamos tomar uma
atitude!) e até mesmo o camarada cult, que tem ânsia quando ouve
falar de cultura popular. Sua característica principal é chutar tudo o que for
pobre, feio, sujo e acessível, e se mostrar incapaz de rir dele mesmo.
No Facebook, encontrou o terreno ideal para compartilhar
todas as suas referências culturais sem precisar ter uma linha sequer de ideia
própria.
Nada contra nada disso. Entre tanta imagem e projeção, há
cada vez mais espaços para discussões antes inexistentes, e poder se manifestar
é sempre muito melhor do que morrer em silêncio. Na pior das hipóteses, a
manifestação pode render uma piada ou caricatura. Na melhor, pode provocar uma
Primavera.
Só não sei ainda se, no meio de tudo, a comoção eletrônica
no Brasil é falta ou excesso de revolta. A cada dia descobrimos mais gente
indignada com a situação dos poodles, com a decadência dos costumes
e com o avanço da cultura de massas. Ao mesmo tempo (e isso é só um exemplo),
bandidos de toga criam mordaças e se sentam em cima de uma caixa preta judiciária
que só alguns querem abrir. E o que ouço são só grilos competindo com o mais
engajado dos silêncios.
Fonte: Carta Capital por Matheus Pichonelli