A educação sexual que só explicava como nascem os bebês
ficou ultrapassada. Hoje, nem os professores nem as famílias escapam de abordar
questões de gênero mais complexas - e todos precisam estar bem preparados para
isso.
Laure tem 10 anos e quer ser um menino. Então, aproveita a
mudança de endereço da família para se apresentar à nova turma de amigos como
Mickäel. Dona de um corpo esguio, ainda sem seios, usa o talento para o futebol
e a força em brincadeiras que envolvem corpo a corpo para provar do mundo
masculino. Em dia de nadar no lago perto de casa, Laure/Mickäel não quer que
ninguém perceba a diferença em relação a outros garotos. Transforma seu maiô
feminino em sunga e ainda usa massinha para modelar um volume que simula o
pênis. É uma das cenas mais fortes e comoventes do filme Tomboy, exibido por
aqui em 2012. Dirigido pela francesa Céline Sciamma, trata com delicadeza e
realismo de um tema que hoje, mais do que nunca, pode entrar na escola e em
casa de repente, sem pedir licença. Afinal, vivemos tempos de casamentos gay
formalizados, novas organizações familiares, luta mais acirrada pelos direitos
humanos, clamor por tolerância e contra o preconceito. Nesse contexto, não é
raro que pais e educadores tenham de abordar temas como orientação sexual.
De volta ao filme, o truque funciona e, na pele de Mickäel,
Laure se diverte à beça. Até conquista uma das meninas da turma. Mas a farsa
está com os dias contados, pois as aulas vão começar e não há nenhum Mickäel na
lista de chamada. Por acaso, a mãe descobre que a filha, quando está fora de
casa, vive como um menino. Leva um susto. Conta ao marido, que fica desolado.
Desesperada, arrasta a filha até a casa de alguns dos amigos e diz a verdade aos
pais deles. Será que ela fez certo? Tamanho constrangimento poderá ajudar em
quê? A turma será capaz de aceitar Laure que prefere ser Mickäel? Será que é
apenas uma fase ou ela terá esse conflito para sempre? O que você faria se algo
semelhante ocorresse em sua casa? Ou, então, com um amigo de seu filho?
"Na dúvida, não faça nada. Se agir no automático, a
reação será discriminatória. Espere passar o susto e reflita antes de tomar uma
atitude", orienta Claudia Vianna, da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, responsável pela formação de professores com ênfase
na diversidade de gênero. Estudiosa do tema, ela acredita que os adultos
ainda não estão preparados para lidar com a transexualidade nem com sinais de
homossexualidade na infância. Mas argumenta que há avanços na forma como as
escolas estão resolvendo as questões de gênero. "Hoje, os professores são
formados para lidar com a diversidade. É uma transição importante, pois
nós não tivemos isso na nossa educação."
O que não dá mais, nem para educadores nem para os pais, é
continuar acreditando que "coisas assim" ocorrem só em filmes. A
união homoafetiva com direitos iguais aos dos cônjuges heterossexuais, por
exemplo, entrou nos trilhos da legalização no Brasil desde 2011 - e, desde maio
deste ano, o casamento entre parceiros do mesmo sexo já pode ser realizado em
qualquer cartório do país. Aumenta, assim, o número de gays e lésbicas que
constituem famílias, com filhos adotados, concebidos por inseminação artificial
ou vindos de relações heterossexuais anteriores. Esse cenário de multiplicidade
nas organizações familiares se reflete no comportamento das crianças. "Mas
não é porque o menino colocou uma roupa de fada que ele vai ser gay ou querer
mudar de sexo. Isso não se define na primeira infância e depende de muitos
fatores", afirma Beto de Jesus, educador há 25 anos, que há 13 trabalha
com o Ministério da Educação dando cursos para formação de professores com
ênfase na diversidade sexual.
A informação é o que ajuda a combater o preconceito. "O
mais importante é entender que essas manifestações são uma expressão da
integridade da criança ou do adolescente. Ser gay, lésbica ou transexual são
marcadores de identidade que nos constituem como pessoa, mas somos todos
cidadãos, com direitos iguais. O respeito às diferenças tem de ser ensinado e
garantido pela escola", completa Beto, membro fundador da Parada Gay de
São Paulo e um dos coordenadores da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). Ele foi um dos convocados pela
Organização dos Estados Americanos (OEA) para formular um plano de abordagem
desses assuntos nas escolas dos 35 países-membros - as estratégias surgidas
serão debatidas em um encontro neste mês, em Washington, nos Estados Unidos.
Tudo deve ser sempre abordado com naturalidade - até ao
responder perguntas embaraçosas, como "por que meu amigo tem dois
pais?" ou "por que a titia tem namorada?" Vale lembrar que o
olhar da criança não é moralista. "Aproveite, então, para dizer que cada
pessoa escolhe viver à sua maneira e não há certo ou errado nessa área",
sugere Ana Lúcia. "Geralmente, os pequenos só querem uma resposta curta,
para confirmar se o adulto também nota algo novo ou diferente. Não há crítica
ou juízo de valor." Segundo ela, embora não existam respostas prontas, a
escola precisa puxar essa conversa. "A iniciativa acalma os pais e ajuda a
encontrar saídas." Ensinar a não dividir o mundo em certo e errado ou
normal e anormal, disseminando a tolerância, ainda é um investimento e tanto no
futuro. "Considerando as diversidades, podemos construir seres humanos
mais íntegros, menos constrangidos ou medrosos", diz Claudia Vianna, da
USP. "O amor não precisa ter sexo definido, e a possibilidade de amar quem
se escolheu, seja quem for, só aumenta as chances de mais pessoas serem
felizes."
Sem pressão nem indução
Chamada pela medicina de transtorno de identidade de gênero
(TIG) ou disforia de gênero, a transexualidade pode ser diagnosticada em
crianças a partir dos 4 anos. O especialista considera a história do paciente e
da família, a maneira como um gênero e outro são vivenciados, e por aí vai.
Embora ainda seja mais comum ficarem assustados quando notam ou ouvem algo que
foge ao esperado, os pais não devem se apressar, mas manter o bom senso. "Para
uma criança, se dizer menino ou menina pode ter múltiplos significados. Então,
é preciso tomar cuidado para não induzi-la a nada", diz o psiquiatra
Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório de Transtorno de Identidade de
Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo. Mais: muitas,
segundo ele, podem até ter diagnóstico de TIG, mas não necessariamente
evoluirão para o transexualismo na adolescência ou na idade adulta.
"Diferenciar isso na infância não é simples. Então, na dúvida, é melhor
não afirmar nada e deixar a vida seguir seu curso, acompanhando sem
interferir."
Fonte: Cláudia
Foto: Reprodução / CLAUDIA